sexta-feira, 26 de março de 2021

For my daughter/Para a minha filha (Weldon Kees)

 



Para minha filha

 

Ao olhar nos olhos da minha filha, eu li

Sob a inocência da carne matinal

Ocultas, insinuações de morte a que ela não dá atenção.

O mais frio dos ventos despenteou este cabelo, e a malha

De algas marinhas tricotaram essas miniaturas de mãos;

O veneno lento da noite, tolerante e brando,

Moveu o seu sangue. Anos ressequidos que eu vi

Pode ser que ela pareça: imunda, persistente

Morte em certa guerra, as pernas esguias verdes.

Ou, alimentada de ódio, ela saboreia a picada

Da agonia alheia; talvez a cruel

Noiva de um sifilítico ou de um tolo.

Estas especulações azedam ao sol.

Eu não tenho filha. Não desejo nenhuma.



For My Daughter

 

Looking into my daughter’s eyes I read   

Beneath the innocence of morning flesh   

Concealed, hintings of death she does not heed.

Coldest of winds have blown this hair, and mesh

Of seaweed snarled these miniatures of hands;

The night’s slow poison, tolerant and bland,

Has moved her blood. Parched years that I have seen   

That may be hers appear: foul, lingering   

Death in certain war, the slim legs green.   

Or, fed on hate, she relishes the sting   

Of others’ agony; perhaps the cruel   

Bride of a syphilitic or a fool.   

These speculations sour in the sun.   

I have no daughter. I desire none.


Tradução: Carlos Ramos


Lei Of

a lei ofusca
quem dela mais depende
lay off
falei ofegante
gelei ofícios
e orifícios
calei ofensivas
obtusas
selei oficinas
e vitaminas
burilei oftálmicas
vacinas
embalei ofertas
de vinho do porto
offley
e deitei fora as batatas fritas
lay's off

quinta-feira, 25 de março de 2021

Amen (james Balwin)

 





Amen

 

No, I don't feel death coming.

I feel death going:

having thrown up his hands,

for the moment.

I feel like I know him

better than I did.

Those arms held me,

for a while,

and, when we meet again,

there will be that secret knowledge

between us.

 

 

Amém


Não, não sinto a morte a chegar.

Sinto a morte a partir:

tendo levantado as mãos,

para o momento.

Sinto que o conheço

melhor do que eu.

Aqueles braços seguraram-me,

por um tempo,

e, quando nos encontrarmos novamente,

haverá esse conhecimento secreto

entre nós.


Tradução: Carlos Ramos


 

domingo, 21 de março de 2021

Rolf

 




Jucar

 


Flores

            A Leopoldo Maria Panero


Coloco a mão nesta data querida

inconsciente das vidas dos outros

frutos deste dia

em que o silêncio é cada vez mais fundo

mas deixa que ele pergunte o que se passa

nas pessoas intervaladas pelo medo

que idade têm aquelas flores

que lhes murcham os fatos?

certas coisas morreram

mas ainda não se sabe quais

alguns assobiam uma canção de memória

outros republicam as fotos

desgastadas pelo cansaço da desilusão

que Primavera é esta

que dedo de sangue deixou de pingar vermelho

o fogo ar acima como uma bandeira

incendiando o azul.

Dentro de nós tremeluz um país

o poema que nasceu neste dia

desenrolou-se no céu

como um lençol

e depois morreu

guardo-lhe as cinzas

para a raiz de pulmões novos.


Nesta amargura eu li-o ao meu amigo

enrolado no desvelo da lonjura

o meu amigo disse:

acabaram-se os lugares onde pousarmos

mas ainda estamos por cair.


Carlos Ramos. A destruição da mentira. Heteronimus 2020.

sexta-feira, 19 de março de 2021

Reflexos


 

a luz abraçou a bruma coberta de maresia
numa dádiva matinal 
de cores sumptuosas
talvez mágicas

esplendor que foge ao entendimento 
dos homens
mas não das flores 
nem dos pássaros

quarta-feira, 17 de março de 2021

Vera prima vera


 

RECENSÃO Liede para um baixo contínuo CORRER PARA TRÁS

correr para trás e abrir a torneira e correr deixar

branco ou tinto a salvação

sorriso poesia da salvação

a salvação do sorriso a poesia

simples estrada sem sinais de trânsito

estrada que vai da boa à boa

regresso esquecido regresso ao calor

à fonte boa da dor olé em sol maior

acústica cega de fazer rir de joelhos espelhos nunca vistos

Onde os erros de rastos perante o mar e as flores

onde a luz que ri pássaros

ora aí é a folha velha a enverdecer

poesia

uma filosofia finalmente limpa em banho Maria

a dormir numa tuba de hipotálamos

e clarinetes de cegonhas

pedagógicas autoheteroestradas

pedagógicas como o musgo nas figueiras

e o ziguezague dos mexilhões e das lapas

pessoas gaivotas gráficas pessoas carrocéis

de poesia papel de arroz para outras ervas

flutuantes canções na primeira oportunidade oitava

poesia

para dizer o eco que está por baixo das pedrinhas

onde se encontrar tudo no seu exemplo de passar

cheirar e ser de mais a mais

a paciência do mistério no licor possível

restos de maresia mais do que cem tratados de filosofia

onde molhar os pés e caminhar o tempo no relógio de areia

porque é no mar que as coisas acontecem poesia

é lá que os gatos deslizam das páginas e nos dão a mão para a noite

lá já os dedos correm sem atmosfera

para lá da respiração lá

lá dentro

abrem-se águas onde vagas ébrias como pegadas

com uma ocarina entalada nos lábios o céu numa curva da estrada

que se deslocar e se resolver a embora ir embora

ruptura para ir cantar a espiral da cóclea no arco íris do corpo

melodia da folha rasgada em cama de girassóis

toute de suíte a sombra do alvoroço

ritmo de quem chupa a via láctea na ponta da unha até aos dedos

começo de bosques longínquos

de uvas maduras mambos mirtilos e boleros

de abelhas pontualmente às sete e meia idade do mergulho

em qualquer coisa mágica sósia dos milagres calçado ortopédico da eternidade

das roseiras dos sargos e das sestas lâminas de silêncio num mundo líquido

talvez onde se ouvir a música da chuva

e se veja a derradeira verdade verdadeira a la minuta

lá onde o oceano começa a terra crua

dança a entrada da casa sopra

o vento de Gaugin e Bougaiville

exortam-se nos rios fugas urgentes

partituras de luz cinco vezes oito horizontes

praias de molas da roupa no chão do piano preparado

para receber hipóteses incontroláveis supérfluas

livres palavras afeta e desprendidas

nenhum sabor de sua escalada

nómada radiante embrião de lés a lés

na escuridão azul e branco em que as luzes se confundiram

hora da ocasião exata da poesia

aurora de riso no glossário dos abismos

adegas abertas onde se desomunh como gargantas

ao voo das vespas nas mesas das pernas musas devassas

escarpas todas são sexo ardente acordeão e concertina

que o mar rebenta até às palavras

proféticas de Elvis e dos touros livres correndo

atrás das touras abençoadas pelo hálito das bruxas

velhas corridas em queda livre como as primeiras palavras

 

 


domingo, 14 de março de 2021

Dúvidas

Já que falamos disto deixem-me dizer que acho importante pensar bem no assunto, respirar fundo, duas ou três vezes, ou mais se for preciso e aclarar a voz, de forma a não deixar indefinições sobre o que vamos dizer.

Aprendi com o esforço dos anos a cavarem-me rugas na testa e noutras partes do corpo. A bênção de conseguir ser conciso quando falo é uma das maiores virtudes (se assim lhe posso chamar) que o tempo e a experiência me ofereceram.

Ter sempre a cabeça cheia de dúvidas é também uma das qualidades de que me orgulho. Ah, a fortuna de saber que nunca nada é certo nem definitivo!

Prezo as minhas dúvidas com a maior entrega teológica de que sou capaz e proclamo em voz alta a minha dedicação mais profunda ao cepticismo.

Duvido da bondade dos poderosos, da simpatia das vendedoras de automóveis, das traduções de livros estrangeiros, do champô anti-caspa, da cerveja sem álcool, dos ministros da educação e das receitas milagrosas para emagrecer.

Um copo de água com três gotas de limão tanto pode combater o acne juvenil como provocar uma enormíssima azia se for tomado em jejum. Mas também pode não acontecer nem uma coisa nem outra. Deve ser mais ou menos como as vacinas para o covid.

Duvido do riso dos apresentadores de concursos, dos benefícios da canela, dos emplastros de beringela, da sabedoria das multidões, do preço do sabão amarelo, dos engates nas redes sociais e da consistência da manteiga de amendoim.

E no fundo, claro, duvido muito e mesmo muito de mim.

sexta-feira, 12 de março de 2021

A Grande Sombra

Era assim que te escrevia

com as unhas partidas

e a pele retraçada pelo atrito

procurava

um peixe ou uma luz

para voar ou para cegar

ou melhor

para explodir

como um vulcão

que apodrece por dentro

o fogo esquecido

o tempo por incendiar

era assim

que saía de casa

para o mundo

as mãos rotas

os bolsos descosidos

o olhar turvo

e nos pulmões

a tua grande sombra.



Carlos Ramos


quarta-feira, 10 de março de 2021

À JANELA NO TEU ANIVERSÁRIO

                                         A Emily Dickinson


A vida passa-te à janela

um ar gelado

queima-te o tempo que resta

ela parte para longe

tu ficas

cortado ao meio

morres

no absinto dos dias

com a boca cheia de abysmo

e os olhos fundos

postos na sebenta

escrevendo ao anjo

o desespero do vazio

o osso duro na garganta

a tesoura na língua

o sangue seco

sobre a ferida da tarde.

Todos os desastres do mundo

buscam o teu corpo.


Vai-te embora

não lamentes

não voltes.


Inédito: Carlos Ramos

Nighthawks

 Foto:CR


 

Un Lock Down

 


Correr outra vez

correr outra vez  
para trás para a frente 
correr 
deixar correr 
as horas
a vida 
os sonhos 
os dias e as noites 
deixar correr 
deixar escorrer 
a escrita 
a voz 
o ventre
a emoção
o poema 
correr outra vez 
fazer o dia valer a pena

Paulo Chagas